O Amor Não Mata — Mas a Cultura que o Deforma, Sim
São Paulo amanheceu com mais uma tragédia estampada nos jornais. Um novo nome, uma nova foto, uma nova história interrompida. Jovem. Promissora. Morta. E, como sempre, pelas mãos de alguém que dizia amá-la.
Nos acostumamos tanto a essas notícias que já lemos no automático: “feminicídio”, “ex-companheiro”, “ciúmes”, “prisão”. Mas por trás de cada nota curta está uma vida inteira que não vai mais se realizar. Uma mulher que sonhava, que talvez estudasse, cuidasse da família, que desejava liberdade, carinho, respeito. Morreu tentando se desvencilhar de um ciclo violento. E isso não é exceção. É rotina.
No Brasil, o feminicídio é uma realidade cruel, previsível e evitável. Mas, ainda assim, segue se repetindo como um disco arranhado que ninguém desliga. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2024, mais de 1.400 mulheres foram mortas apenas por serem mulheres. A maioria dentro de casa. A maioria por alguém íntimo. Isso não é amor. Isso é poder disfarçado de afeto. É controle vestido de romantismo. É uma sociedade inteira que falha em ensinar homens a lidarem com frustração, rejeição e limites.
A cultura machista que sustenta o feminicídio não começa com um empurrão. Começa muito antes: na piada misógina, no comentário que responsabiliza a vítima, no julgamento da roupa, na romantização do ciúmes, na ideia de que homem “protege”, “manda”, “corrige”. Essa lógica patriarcal molda comportamentos desde cedo. E quando não é confrontada, evolui para o pior.
As vítimas, na maioria das vezes, já haviam pedido ajuda. Haviam registrado boletins de ocorrência. Algumas conseguiram medidas protetivas — que nem sempre protegem. Outras foram desacreditadas por familiares, pela polícia, por amigos. “Ele parecia tão calmo”, dizem. “Mas ela também provocava”, insinuam. E assim, ao invés de apoio, recebem dúvidas. No lugar de proteção, o abandono.
E depois? Depois vem o luto. O espanto coletivo que dura dois dias. As campanhas que brotam nas redes sociais. As hashtags. O “nunca mais” que se dissolve até a próxima morte. Até o próximo nome. Até a próxima mulher assassinada porque decidiu viver por conta própria.
Precisamos falar de educação emocional nas escolas. Precisamos responsabilizar o Estado por cada falha no sistema de proteção. Precisamos mudar a cultura que cria homens que confundem rejeição com humilhação, e mulheres que acreditam que devem suportar tudo “por amor”.
E, sobretudo, precisamos lembrar: o feminicídio não acontece de repente. Ele avisa. Ele escala. Ele dá sinais. E, quase sempre, ignora-se o grito até que reste o silêncio.
Em São Paulo, com toda sua modernidade, acesso à informação, campanhas, serviços, ainda somos cúmplices por omissão. Porque permitir que o machismo continue como norma é assinar embaixo de cada tragédia.
Que esta crônica não seja apenas mais uma reflexão triste. Que sirva de incômodo, de ruptura. Porque não dá mais para conviver com o absurdo como se fosse parte do cotidiano. O amor, o verdadeiro, nunca mata. Mas o machismo mata todos os dias — e com ele, morre também uma parte da humanidade que fingimos ter.
.'. FERNANDO COZZI .'.
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